Subversão somática


.
(Ensaio)

O trabalho da Rubens Barbot Teatro de Dança ocupa um lugar especial no movimento da dança contemporânea.

Não somente pelos 16 anos incessantes de realização e experimentação, mas, sobretudo pelo ato de radicalizar a presença afro-brasileira no cenário da dança com objetos, gestos, imagens e sonoridades negras.

Graças ao olhar intuitivamente etnográfico, Barbot empreende uma captura do ritmo e da poesia presentes na comunicação gestual cotidiana do negro brasileiro. Atua, desta maneira, como colecionador de gestos moleculares da condição humana para, com este material, transformar o corpo de seus bailarinos em corpos possuídos e modulados pela expressividade afro-brasileira.

E, nesta direção, Barbot afirma a presença de um corpo em epifania, naturalmente imanente e intenso. Corpo este que adquire a condição de estar para além dele mesmo, prolongando-se no campo sensorial da audiência. Com Barbot, a memória corporal do negro adquire no palco afirmação estética e temática positiva, o que transforma a condição de negro-corpo-falante em negro-corpo-pensante e, com ele, os gestos triviais cotidianos convertem-se em movimentos cruciais da dança. A semiótica que Barbot desenvolve com seu projeto coreográfico é profundamente audaciosa, pois é de natureza cognitiva quando empreende, no país do racismo cordial, um questionamento ao corpo colonizado e ao espaço da dança como lugares da hegemonia racial.

Reside aí o ponto mais audacioso do seu projeto, que é pensar os corpos afro-brasileiros e as posturas bestializadas pelo colonialismo cognitivo através da arte do movimento e da estética da dança. Ao invadir o palco, Barbot silenciosamente promove um ataque contra-hegemônico no plano cultural (como o dos rapper na indústria fonográfica). Ele ocupa um dos lugares sacralizados pelos apelos às imagens ególatras e narcíseas do corpo branco, colonialista e racista na sua permanente negação ao corpo negro.

Sem desmiolar, e comprometido com uma verdade estética e política, o trabalho de Barbot transforma-se em uma intervenção coreográfica da diáspora africana em confronto com o etnocentrismo à la Brasil.

A suprema importância estética do projeto de Barbot assemelha-se ao trabalho que Alvim Ailey (e atualiza) aliara à luta pela afirmação positiva do negro norte-americano – semelhança esta que aqui se anuncia como parte inegável do processo de descolonização e afirmação silenciosa do negro brasileiro.

Considerado a partir deste ponto de vista, o trabalho da Rubens Barbot Teatro de Dança imprime força e movimento ao desejo, aos sentidos e a vida.
Julio César Tavares - Antropólogo - Dr em linguagem não verbale